banalidade essencial
Num mundo complexo, onde questões como pobreza, racismo, xenofobia, violência, mudança climática e retrocessos democráticos permeiam cada vez mais a vida cotidiana, é essencial dar visibilidade ao que é benéfico e não temer o que parece banal.
Já fomos longe demais tentando ousar, causar, progredir, modernizar e inovar, como se não houvesse amanhã. Tanta destruição e exploração a ponto de esgotar. Que (r)evolução foi essa?
Há quem diga que o mundo está ficando chato, com tanta patrulha sobre o que se pode comer, o que dizer, o tipo de piada que pode ser feita, as expressões que não devem ser repetidas, o que se deve postar, como se comportar e até que banheiro usar. Isso ocorre porque reconhecer direitos e olhar para si mesmo é algo ainda muito pouco experimentado. É compreensível que essa transição possa ser desafiadora e confusa.
Afinal, vivemos numa sociedade que quer inovar mantendo velhos padrões, que valoriza a produção constante, o esforço e, muitas vezes, até o sofrimento. Se não houver um esforço excessivo ou alguma pena envolvida, parece menos válido. Por que será? Uma simples tarefa, que pode ser feita em cinco minutos, terá mais “valor” se for feita em cinquenta? E forçosamente acompanhada com pitadas de reclamação e maldição ao sistema, ao outro, ao que esteja funcionando mal ou fora do esperado? A energia gasta nesse tempo para complicar ainda mais o que poderia ter sido simples, quase banal, não seria melhor direcionada de outra maneira?
Como canalizar bem a energia da raiva, frustração e impotência que muitas vezes nos acomete? Certamente não será pela via da lamentação, reclamação e maldição. Afinal, nossos pensamentos, palavras e ações são os blocos com os quais construímos a nossa realidade – nos lembra Vishua Karma, o arquiteto celestial na astrologia védica.
O conhecimento védico parte dos ensinamentos mais simples e naturais, que poderiam ser facilmente categorizados como banais. Assim, palavras essenciais – como sustentável, saudável, gratidão, devoção e generosidade – caíram no limbo dos termos que sofreram tanto mau uso quanto abuso, que acabam por gerar um certo desconforto. Há quem ache enfadonho falar de yoga, de conexão interna e autoconhecimento. Revolucionário é falar de cura numa sociedade doente, como li outro dia.
Gratidão – quando estamos continuamente preocupados em satisfazer o próximo desejo – não vem fácil. O presente vira um tempo em suspensão, ou se amarra no passado ou se atormenta pelo futuro. Mas é crucial resgatar em nós esse sentimento de profundo agradecimento e contentamento pelo que estamos sendo. Nas práticas diárias do Ayurveda, por exemplo, é ensinado que uma das primeiras coisas que devemos fazer ao acordar pela manhã, após bocejar, espreguiçar e informar ao corpo que acordamos, é expressar gratidão pela vida. Sorrir e agradecer por estarmos vivos, por termos uma vida para viver, que é algo divino. E por termos chegado até aqui. É dito que prosperidade vem para aqueles que cultivam a gratidão.
Devoção pode parecer uma palavra densa, comprometida demais, distante para muitos, especialmente para quem cresceu acreditando em resultados tangíveis, visíveis e palpáveis. O caminho do autoconhecimento, no entanto, nos leva a essa conexão com o invisível, o sutil, com aquilo que não podemos tocar, mas que está presente desde antes de existirmos e persistirá após nossa partida. A forma dessa conexão pode variar, o importante é a confiança, a entrega, uma verdadeira permissão para sair do modo racional, lógico, comprovado, e se abrir ao intuitivo, espiritual, desconhecido.
Para isso há técnicas e é essencial praticá-las: yoga, meditação, respiração consciente, atenção ao momento presente. Dependendo do ponto de vista e abertura de cada um, isso pode soar banal, ou essencial. Uma tendência forte ao auto-boicote já vem com desculpas prontas: não há tempo para dedicar a isso, estamos sempre exaustos entre o trabalho e outras responsabilidades, temos outras prioridades, etc.
Isso remete imediatamente para outra coisa que li: a sociedade do cansaço, ao invés de descansar, pensa primeiro em desistir. E esse sentimento de cansaço e impotência traz junto a insatisfação geral com a vida, a ênfase na falta e desatenção ao que se tem. Ou seja, vibra pela perspectiva da escassez, e não da abundância.
Nessa busca infindável pelo que não se tem, uma boa ideia seria pausar e tentar se conectar com um dos conceitos mais simples e dos mais desafiadores em tempos de super produtividade e estímulo: Uparatihi. Uparatihi significa relaxamento, calma ou a atitude de permanecer relaxado. Em outras palavras, é o direito de não fazer nada. Nos textos clássicos do Yoga, Uparatihi é um dos valores que devem ser cultivados para alcançar moksha, a liberdade.
Que tal aproveitar algum momento do seu dia para praticar uparatihi e relaxar, usufruindo do seu direito ao nada fazer? Longe de estar incentivando a preguiça, a letargia ou a autoindulgência – isso que sobra na sociedade do cansaço. É importante lembrar que, até mesmo para relaxar, há uma certa intenção. Relaxar implica uma atitude consciente, no momento presente, uma permissão real – sem aquela ilusão de que fumando um cigarro, assistindo televisão ou comprando alguma coisinha na internet, estamos relaxando.
Num mundo que tanto valoriza a correria, a dificuldade e o ter, talvez o verdadeiro ato revolucionário seja se dar o direito de relaxar e redescobrir a simplicidade e a serenidade de apenas ser.